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I’ll be gone in the dark (livro e seriado)

O Golden State Killer foi um dos mais ativos estupradores e assassinos em série dos Estados Unidos. Ele era tão eficiente no que fazia que levou QUARENTA ANOS para ter sua identidade descoberta.

Uma das pessoas mais empenhadas em capturá-lo foi a escritora Michelle McNamara, que gastou os últimos anos de vida tentando desvendar o mistério. Ela morreu inesperadamente, muito jovem, antes de conseguir isso.

Em 2020, a HBO estreou um seriado documental em homenagem à escritora. Michelle era descrita como inteligente, divertida e com um talento único para a investigação. Eu desafio você a não se apaixonar por ela, como eu me apaixonei! Além de conhecer o intrigante crime que, de certa forma, acabou com a vida dela…

Fiz uma série, no meu IGTV, contando sobre a trajetória da Michelle e o caso. São cinco episódios ao todo. Para os amantes do true crime, como eu – e a Michelle! 😉

Veja a playlist com os cinco episódios da minha série de vídeos!
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Resenha de Suzane – Assassina e Manipuladora, sobre o caso Richthofen

“Frank Sinatra está resfriado”: quando Gay Talese traçou o perfil do cantor estadunidense, ao longo de numerosas páginas da revista Esquire, sem sequer entrevistá-lo!, ele, praticamente, inventou o Jornalismo Literário – estilo que mescla o texto jornalístico com técnicas da literatura. Talese chegou a marcar um encontro com Sinatra, que cancelou, alegando uma gripe. Depois, avistou o músico num bar. O lendário jornalista, então, produziu a reportagem apenas observando o cantor e conversando com pessoas próximas a ele. ⠀⠀⠀

Ullisses Campbell tentou entrevistar Suzane von Richthofen, a mais célebre presidiária brasileira, na casa do namorado dela, em Angatuba. Suzane pediu para a cunhada avisar que não poderia recebê-lo, pois havia tomado sol em demasia. Ullisses viu Suzane, mais tarde, na praça da cidade; pálida feito um fantasma! Inspirado por Talese, o jornalista brasileiro falou com quem a cercava. Centenas de entrevistas foram realizadas para a fazedura de “Suzane – Assassina e Manipuladora“, livro que ganhou as prateleiras no início de janeiro e está esgotado nas livrarias. Segundo Ullisses, o estilo literário de Talese ditaria o tom de suas páginas. Ora, querer igualar-se a Talese é pretensioso. E afogada em pretensão é a escrita de Campbell. Sempre digo que admiro escritores que escolhem as palavras com zelo. Ullisses o faz… O problema é que lhe falta refinamento e bom gosto. Assim, quando o autor chama Suzane de “ninfeta”, ele transforma em cômicas ou vulgares passagens que não deveriam ser. Nos momentos mais críticos, o texto é tão ruim que soa artificial, forjado. O autor garante, no entanto, que nenhuma situação do livro foi fabricada por ele.
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Curiosamente, é possível perceber algumas diferenças narrativas entre a publicação de Ullisses e O Quinto Mandamento, título da criminóloga Ilana Casoy lançado há mais de dez anos. Na obra do jornalista, a aprovação de Suzane no vestibular da PUC/SP foi celebrada pelo pai dela. Na versão de Ilana, só a USP seria aceita por Manfred.

Durante a reconstituição do crime na mansão, Ullisses alega que Andreas, filho caçula do casal, permaneceu em tempo integral no quarto da empregada, assistindo a um desenho na TV, e não quis ver a irmã. Em O Quinto Mandamento, Andreas acompanhava a reconstituição pela televisão do próprio quarto, sintonizada no Datena. Ao encontrar Cristian Cravinhos no corredor, assassino confesso da mãe dele, o menino o abraçou emocionado, surpreendendo todos os presentes – incluindo Ilana.
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Ullisses Campbell, embora seja jornalista formado e se esforce, não tem a escrita charmosa, fluida e organizada de Ilana Casoy, administradora por formação. O livro dele também não possui as minuciosidades da obra dela. Justificável, uma vez que o repórter narra 20 anos de história em rasas 200 páginas.
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Em paralelo à famigerada crônica policial dos Richthofen, Ullisses aborda a trajetória das companheiras de cela de Suzane. A maioria delas está na cadeia por pecados maiores que os da protagonista. Os alívios cômicos ficam por conta dos embates entre Andreas, retratado como um adolescente mimado e arrogante, com a empregada do lar, Rinalva, uma nordestina arretada. Os diálogos entre os dois são hilários e beiram o inacreditável. Incompreensível, mesmo, é a notícia de que Manfred e Marísia quase foram parar na vala comum do cemitério porque a família deixou de pagar uma taxa (apesar da frieza, eles eram pais cuidadosos e provedores). A propósito disso, um motivo que faz esse crime ter bastante apelo diante do público até hoje – além do livro esgotado, dois filmes estrearão -, é que, na casa dos Richthofen, é difícil definir quem é vilão e quem é mocinho. Todos os personagens são controversos, tanto no campo moral quanto psicológico, incitando quem os acompanha. ⠀⠀⠀

“Suzane – Assassina e Manipuladora” é indicável para aqueles que sabem apenas o básico sobre o assassinato de Manfred e Marísia. Para quem conhece os pormenores, não traz grandes novidades. As poucas informações inéditas não têm relevância para o crime e soam mais como fofocas de bastidor. “Tipo dizer que Sinatra está resfriado”, você deve ter pensado. A diferença é que Ullisses Campbell não é nenhum Gay Talese.

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Resenha de O Quinto Mandamento, sobre o caso Richthofen

“Honra teu pai e tua mãe”. O descumprimento do quinto mandamento da Bíblia culminou num dos mais ferinos e afamados crimes brasileiros: o assassinato do casal Manfred e Marísia von Richthofen, pela filha deles. ⠀⠀⠀⠀
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Em “O Quinto Mandamento – Casos de Polícia” (o primeiro de dois exemplares), a criminóloga Ilana Casoy, sobrinha de Boris Casoy, nos invita a passear pelos bastidores do homicídio. O estilo narrativo da autora tem aquele charme comparável aos grandes romances policiais, o que nos causa a sensação de estarmos diante de uma história de ficção. Apesar de não ser jornalista formada – ela é administradora -, Ilana cita o lendário Truman Capote nas primeiras páginas do diário. É preciso ter estômago forte para digerir algumas passagens, como a descrição precisa dos golpes desferidos contra o casal e a morte lenta e agônica de Marísia. Ilana coloca o leitor dentro da cena do crime. Como boa escritora que é, ela jamais entrega qualquer informação antes da hora, para que nossa experiência, ao devorar a obra, seja próxima ao ofício de um investigador; o de encaixar peças soltas.

O trabalho investigativo é minucioso e apaixonante! Assim como faz Ilana na escrevedura do livro, os investigadores estão sempre à procura das palavras corretas, a fim de manobrar a resistência dos investigados. Num dos capítulos mais impressionantes, que aborda o depoimento de Andreas von Richthofen, irmão caçula de Suzane, é como se o estrondo ecoasse em nossa própria cabeça quando Ilana descreve o murro que um delegado dá sobre a mesa. Ele achava que o adolescente não ajudava como podia. Despertamo-nos com o barulho incômodo tal como o personagem, que se via obrigador a falar. “Teu mundo caiu, Andreas”, não poupou o policial. Agora, nos transportamos para o lugar ingrato do menino. Em outros trechos, duvidamos da inocência dele…

A leitura só se torna menos imaginativa quando transcendemos os limites da obra escrita. O caso Richthofen foi amplamente documentado. É possível ler fragmentos da narrativa e, imediatamente, encontrar vídeos referentes na Internet. Um exemplo é o momento da reconstituição do assassinato. O desespero dos irmãos Cravinhos – livres da adrenalina que os acometia no dia do crime, eles, então, puderam refletir sobre seus atos pela primeira vez – contrastava com a falta de emoção de Suzane. Andreas acompanhava tudo pela TV no quarto ao lado.

Quase vinte anos depois, venci a última folha do livro, tão indigesto, e retomei meus sentidos com esforço. De supetão e com alguma surpresa, recordei que essa nunca foi uma história de ficção. As palavras escolhidas com zelo por Ilana confidenciavam a mais desonrosa verdade.

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Resenha de Jantar Secreto, do Raphael Montes

Se é genuína a afirmação de que “tudo o que é proibido é mais gostoso (…literalmente?)”, então, não me resta outra alternativa, a não ser me confessar: ao final de cada uma das quatro noites de carnaval, não reuni forças em suficientes quantidades e sucumbi à mais inebriante tentação; participei daquela que é conhecida como “a festa da carne”. Foi quando devorei, sem culpa, o livro “Jantar Secreto”, do Raphael Montes. Na trama, quatro amigos de infância, nascidos e criados no interior do Paraná, decidem dividir um enorme apartamento no Rio de Janeiro, onde farão faculdade. Tempos depois, formados e malsucedidos, eles resolvem oferecer jantares com carne humana para a elite carioca, a fim de levantar dinheiro. Segundo os jovens, quem come carne humana uma vez… vicia! ⠀⠀⠀

(Sei que minha confissão soa inapropriada para uma Quarta-feira de… Cinzas!). ⠀⠀⠀

Em Jantar Secreto, o protagonista Dante se dirige ao leitor sem desvios. Ele se apresenta e apresenta a história de forma objetiva, joeirando as palavras com a mesma precisão e refinamento com que um chef de cozinha escolhe o corte de uma carne nobre. Já no primeiro parágrafo, estamos decididos a ouvir o que Dante tem para contar.
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A narrativa construída por Raphael Montes é instigante. Ele traz os acontecimentos à tona com velocidade, sem deslocar do caminho, fazendo com que a trama ganhe bastante fluidez. Quase sempre é assim. Em alguns momentos, como a passagem em que o grupo rouba um cadáver de um hospital público, acho até que o autor poderia ter se alongado um pouco, para ofertar umas doses extras de adrenalina. Nos raros instantes em que o livro perde a ligeireza, Dante volta a conversar diretamente com o leitor, como quem restabelece a conexão. Mostrando a impressionante sensibilidade e domínio que Raphael detinha sobre sua escrita.
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A publicação está recheada de críticas sociais ao Brasil. Afirma que o mercado de trabalho é feito para ricos e que é difícil – ou praticamente impossível – enriquecer honestamente no país. Também denuncia que negros e pobres estão invisíveis para a maioria das pessoas. Nem de longe, no entanto, esses são os fragmentos mais indigestos do cardápio.

Lá para a metade, os acontecimentos cadavéricos são tão pesados que a gente se sente exausto. Como se tivesse acabado de devorar um prato de feijoada. Melhor não pensar em feijoada nesse momento. O corpo implora por uma pausa, por um café preto. O que se sucede, todavia, impede qualquer impulso de fuga. Uma vez que você começa o livro, não consegue parar de lê-lo.

Enquanto eu saboreava aquelas páginas – juro que estou me controlando para não fazer trocadilhos culinários, mas eles saem quase naturalmente -, não conseguia deixar de considerar que elas possuíam forte apelo para serem adaptadas ao cinema. Todos aqueles ricos sentados à mesa, dividindo seus encafuados pecados, renderiam cenas no estilo de Deus da Carnificina, do Polanski, ou mesmo do nacional O Banquete, de Daniela Thomas.

Contudo, se tem um pecado que Raphael não comete ao fabricar sua obra é o de se distanciar da realidade ou se valer de resoluções clichês e altamente convenientes (os mais corriqueiros defeitos de publicações policiais e de suspense). ⠀⠀⠀

O que não quer dizer que o desfecho não seja previsível. Ele é. Um dos diálogos entre Dante e a mãe nos leva a concluir como a trama irá acabar. Não tenho certeza se Raphael deu a informação propositalmente – muito provável que sim -, mas, a partir de então, vencer a última folha do livro e provar por certa a própria teoria vira uma questão de honra para quem lê. Quando isso finalmente acontece, o leitor não deprecia o enredo. Ao contrário: considera-se astuto.

Tudo é parte da narrativa bem construída. As conversas de Dante com o leitor se tornam tão íntimas que, a certa altura, a gente se sente integrante da história, reconhece-se como um cúmplice dos quatro amigos. Por isso, quando os anti-heróis estão prestes a serem pegos, ao invés de torcermos para que o bem prevaleça, nós ficamos do lado deles, de tão envolvidos que nos encontramos. ⠀⠀⠀

De fato, o Brasil está bem servido na literatura policial. Jantar Secreto me abriu o apetite para devorar outros trabalhos do escritor. Afinal, quem lê Raphael Montes uma vez… vicia!

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O tempo do cinema

Seguindo o post anterior, quero indicar dois livros a quem gosta de cinema. Li-os há sete ou oito anos e preciso revisitá-los. No entanto, foram duas das obras que mais me extasiaram enquanto cinéfila.

O primeiro é Esculpir o Tempo, do Andrei Tarkovsky, que ele escreveu entre uma gravação e outra, porque estava insatisfeito com as teorias cinematográficas disseminadas por seus antecessores soviéticos. No livro, Tarkovski discorre sobre a importância do tempo para dar ritmo à narrativa e sobre a não-linearidade de suas histórias; lirismo emprestado dos poemas. Ele ainda enfatiza a necessidade de não entregar respostas prontas ao espectador, para que ele seja estimulado a pensar. Ideias que iam de desencontro com Sergei Eisenstein, um dos mais importantes nomes do cinema de montagem, que usava a edição para manipular a visão do público, através de colagens. Apesar Eisenstein ostentar o título de precursor da técnica, antes dele, o cineasta Lev Kuleshov havia feito experimentações nesse sentido. Numa delas, ele pegou uma mesma cena de um ator e a intercalou ora com a imagem de um prato de sopa, ora com a imagem de uma criança morta e, por fim, com uma situação amorosa. O diretor concluiu que a percepção do público em relação à cena do ator mudava conforme a montagem que se seguia.

Quem também não era entusiasta da edição nos filmes era André Bazin, crítico e teórico, cujo trabalho influenciou ninguém menos que François Truffaut. Em seu livro O Que é Cinema?, Bazin argumenta que o diretor deve retratar o mundo real com fidelidade. Ao contrário de Eisenstein, que preferia esgotar qualquer possibilidade de dúvida do espectador, Bazin dizia que a realidade era mesmo ambígua e que não havia mal em deixar o público decidir que interpretação faria dela. Embora tivesse esse ponto em comum com Tarkovsky (e também o gosto por sequências longas e profundidade de campo), os dois discordavam em outros aspectos. Tarkovsky, frequentemente, ia além da realidade palpável. Explorava, sobretudo, o mundo imaginário, dos sonhos; diferente de Bazin. Independentemente disso, a obra dos dois é imprescindível e complementar. Afinal, assistir à sétima arte é como sonhar. Só que acordado.

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Infelizes pra sempre? Desejo Sombrio e a representação do casamento na tela

Uma conversa informal sobre Desejo Sombrio, suspense mexicano renovado pela Netflix recentemente, tamanha a popularidade da série na plataforma!

O seriado retrata um casamento de vinte anos falido pela luxúria e a ganância.
Ainda faço um paralelo entre a trama – protagonizada por Maite Perroni e Alejandro Speitzer – e o livro I do and I don’t: a history of marriage in the movies, da professora estadunidense Jeanine Basinger.

Aproveita que o frio chegou e confira a série sem nem sair da cama, já que é a cama um cenário frequente do seriado!

Publicado, originalmente, no meu IGTV (@elagabygabriela)

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O arquétipo da Mulher Selvagem em Bom Dia, Verônica

Contém spoilers.

As tramas costuradas em Bom Dia, Verônica em muito me lembraram passagens do livro Mulheres Que Correm Com os Lobos, da psicanalista Clarissa Pinkola Estés. Na obra, ela analisa contos e mitologias disseminados ao longo dos séculos, que retratam a mulher em seus mais diversificados arquétipos. Já na introdução do livro, a autora explica o título: diz que mulheres saudáveis têm características comuns aos lobos, como percepção aguçada, espírito brincalhão e capacidade para a devoção. Elas são seres altamente intuitivos e zelosos com sua “matilha” (grupo). Esse é o arquétipo da Mulher Selvagem, uma força que está por trás da mulher instintiva e que lhe é inata.

O problema é que, em grande parte das vezes, esses poderes naturais da mulher são destruídos por condições internas e externas a ela, como cultura, intelecto e ego. Na literatura, por exemplo, a mulher é frequentemente retratada através de seus defeitos e fraquezas. Assim, a Mulher Selvagem não tem condições de ser desenvolvida e, ao invés disso, transforma-se na presa de um predador. Para reverter a situação, segundo a autora, a mulher deverá penetrar nas trevas – mas sem cair numa armadilha e terminar morta. A fim de ilustrar a situação, ela cita a mitologia do Barba-Azul.

Na fábula, o Barba-Azul é um homem que causa asco em três irmãs, devido a sua aparência desagradável. Certo dia, elas aceitam passear no bosque com ele e têm uma tarde agradável. Apesar disso, as duas moças mais velhas continuam resistentes ao sujeito, enquanto a mais nova acaba por se casar com ele. Barba-Azul, numa ocasião, vai viajar e sugere à esposa que chame as irmãs ao castelo para lhe fazer companhia. Fala à jovem que ela pode entrar em todos os cômodos do lugar, menos um. E é, justamente, onde ela e as irmãs adentram quando o marido deixa a casa. Lá, elas encontram os restos mortais das antigas esposas de Barba-Azul (e que, como ela, haviam desrespeitado a única restrição que ele lhes havia dado). Ao retornar ao lar, o homem fica furioso com a desobediência da esposa. Ele a agarra pelos cabelos e a leva até as profundezas de um arcabouço, onde terá seu fim. Para ganhar tempo, a mulher implora por alguns minutos extras para se preparar à morte. Período suficiente para que os irmãos da moça cheguem ao castelo, matem o Barba-Azul e salvem a vida da irmã. A história me remeteu à trama de Brandão e Janete.

Na série, Janete deixa o interior para viver na capital São Paulo, no que seria um verdadeiro conto de fadas. Quando a irmã caçula chega à casa dela de surpresa, ela nos revela que imaginava que Janete vivesse numa casa bonita, tendo vida boa e um marido exemplar. Ela representa a ingenuidade da própria Janete, que pode ser comprada à irmã mais nova do conto. Com o passar dos dias, no entanto, essa irmã vai percebendo a realidade e tenta ajudar Janete a sair daquela situação, assim como fizeram as irmãs mais velhas da história do Barba-Azul.

Janete, todavia, não tem seus poderes instintivos intactos. Por isso, tal qual a esposa do conto, ela se convence de que Brandão não é tão ruim assim, apenas excêntrico. Como a autora explica, seu sistema de alarme não está totalmente desenvolvido. Isso a transforma em alvo para o predador – que, no caso, é Brandão; na fábula, era o Homem-Azul, mas pode ser, também, algo intrínseco à mente da mulher. Culturalmente, somos programadas à auto sabotagem. Tanto que, no seriado, sempre que Verônica ou a irmã de Janete tentam auxiliá-la, Janete dá um passo para trás. “Elas se casam enquanto ainda são ingênuas a respeito de predadores, e escolhem um parceiro que é destrutivo para com a sua vida. Elas se sentem determinadas a ‘curar’ aquele a quem amam. Estão, sob certo aspecto, ‘brincando de casinha’.”, escreve a autora.

No enredo, Brandão obriga Janete a sequestrar uma mulher jovem na rodoviária. Então, inicia-se um jogo: ele leva as duas para um sítio, numa espécie de esconderijo, e coloca uma caixa na cabeça de Janete, enquanto tortura, fisicamente, a vítima sequestrada. O esconderijo, não diferente do da história secular, parece um calabouço.

“Eles são antigos ambientes iniciáticos: um lugar ao qual ou através do qual a mulher desce até o(s) assassinado(s), onde desrespeita tabus para descobrir a verdade e de onde, através da inteligência e/ou do sofrimento, sai vitoriosa ao expulsar, transformar ou exterminar o assassino da psique. O conto delineia para nós as tarefas com instruções claras: descubra os corpos, siga os instintos, veja o que estiver vendo, reúna energia psíquica, acabe com a energia destrutiva.”, ensina Clarissa.

Brandão desafia Janete a sair da caixa, mas ela nunca o faz. Abrir a caixa é a chave de Janete para se livrar daquela situação e desenvolver sua Mulher Selvagem; é como a chave proibida da fábula. Sobre isso, a autora diz,

“Ele sugere à mulher uma falsa sensação de liberdade. Ele insinua que ela pode se alimentar à vontade e se deliciar com paisagens bucólicas, pelo menos dentro dos limites do seu território. Na realidade, porém, ela não é livre porque não lhe é permitido registrar o conhecimento sinistro a respeito do predador, muito embora, bem no fundo da psique, ela já compreenda bem a questão”.

Quando Janete, finalmente, sai da caixa, ela é punida por Brandão, que lhe pega pelos cabelos e os corta, lhe tira as forças. “Proibir uma mulher de usar a chave que leva à consciência é o mesmo que lhe arrancar a Mulher Selvagem, seu instinto natural de curiosidade”, argumenta a psicanalista. Sair da caixa em que foi domesticada, ao longo de gerações, é, todavia, um mal necessário a qualquer mulher.

“É a essa altura que a natureza ingênua começa a amadurecer, a questionar. O que está por trás do visível? O que faz com que aquela sombra cresça na parede?’ Aquelas que quiserem desenvolver a consciência perseguem tudo que fica por trás do que é facilmente observável: o gorjeio invisível, a janela suja, a porta que range. Elas perseguem esses mistérios até que a substância da questão lhes seja revelada. A capacidade de suportar o que se vê é a visão vital que faz com que a mulher volte a sua natureza profunda, para ali receber sustentação em todos os pensamentos, sentimentos e atos”, Clarissa pontua.

Uma vez que Janete percebe que Brandão não vai mudar, que ele não irá parar de obrigá-la a sequestrar mulheres – uma vez que ela toma coragem de olhar para fora da caixa! -, Janete tenta restabelecer o domínio da própria vida. Para isso, ela recua e dá a volta, finge bom comportamento ao gosto do marido. Recuar e dar a volta, conta a autora, são movimentos de um animal que se enfurna na terra para fugir e aparecer às costas do predador. Segundo ela, a esposa do Barba-Azul se utiliza da “manobra psíquica” quando pede tempo para se preparar à morte e ele lhe concede. Janete telefona para Verônica e planeja uma armadilha com ela. Na fábula, a esposa convoca os irmãos, o que pode ser encarado como uma metáfora. Clarissa defende que o chamado dos irmãos representa a convocação dos elementos mais agressivos da psique. No conto do Barba-Azul, representada na figura dos homens. Na série, na de Verônica (explicarei o porquê em seguida). Na primeira ocasião em que a esposa de Barba-Azul pergunta às irmãs se elas veem os irmãos, elas dão uma resposta negativa. Isso acontece porque “os aspectos defensores da psique não estão tão acessíveis à consciência como deveriam estar. O entusiasmo e a natureza combativa de muitas mulheres não se situam tão perto do consciente quanto seria eficaz.” Só na terceira indagação é que os irmãos aparecem e a salvam. Já no seriado, Verônica não chega a tempo de libertar Janete e ela morre.

A autora explica que os irmãos representam o animus da esposa. De acordo com o psiquiatra Carl Jung, todo homem nasce com um anima – uma força feminina – e toda mulher nasce com um animus – uma força masculina. Que contrapõem os elementos naturais de cada um. No livro, Clarisse explica da seguinte forma: “Uma mulher com um animus pobremente desenvolvido tem muitas ideias e pensamentos, mas é incapaz de manifestá-los (…) Ela sempre para a um passo (…) da implementação” (Janete). “Quanto mais forte e amplo o animus (pense no animus como uma ponte), com maior estilo, capacidade e desenvoltura a mulher manifestará suas ideias e seu trabalho criativo no mundo exterior de modo concreto” (Verônica).

Portanto, no seriado, embora Verônica também lute contra Brandão e os desencorajamentos que o ambiente policial – culturalmente, bastante machista – lhe impõem, ela tem a Mulher Selvagem muito mais desenvolvida do que Janete. Por isso, Janete morre queimada, enquanto Verônica ressurge das cinzas, transformada.