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Resenha de A Praia do Fim do Mundo

A Praia do Fim do Mundo começa com a imagem de Jonas prestes a ser engolido pelo “grande peixe”. Segundo a Bíblia, Deus mandou que Jonas avisasse que a cidade Nínive seria destruída por causa do mau comportamento de seus moradores. Jonas, no entanto, desrespeitou a vontade de Deus e pegou um barco rumo a outra direção. No meio do caminho, uma tempestade surpreendeu os marinheiros, e Jonas foi jogado ao mar para que a tormenta cessasse. Ele, então, passou três dias e três noite na barriga de uma baleia.

Já no filme de Petrus Cariry, as casas à beira de uma praia do Ceará estão prestes a serem “engolidas” pelo mar, com a maré subindo rapidamente. O filme faz um alerta como um farol: as mudanças climáticas são iminentes e catastróficas, dignas do fim do mundo.

Aqui, as casas são as próprias embarcações em meio à tormenta. O medo da tempestade se dá, quem diria, em terra firme. Esse medo do mar é uma comum dos filmes antigos, uma vez que, no período das grandes navegações, temia-se que os mares possuíssem monstros, figuras mitológicas, que findavam a vida dos marinheiros – e não a falta de tecnologias. Esse temor, inclusive mitológico, está presente no filme O farol, do Robert Eggers, um dos maiores hypes do cinema meio cult dos últimos anos. Quem gostou da obra de Eggers, certamente, aprovará A Praia do Fim do Mundo.

O filme de Cariry, num primeiro momento, tem como objeto de horror o próprio oceano, sem necessidade de qualquer figura monstruosa. O fato do filme ser todo em preto e branco reforça essa ideia de antiguidade (e não poderia ser de outra forma dada a temática cinzenta da história apocalíptica). Outros elementos remetem ao cinema feito no início do século 20, como o som estourado, em que a falta de cor parece aguçar nossos sentidos da audição. O som do mar se confunde com o som do trovão.

O jogo de luzes no rosto dos personagens filmados em primeiro plano (do peito para cima) torna a ligação com a estética de O Farol, de Eggers, inevitável. A sensação é mesmo de estar vendo um filme antigo, só nos damos conta do contrário nos momentos em que a protagonista tira o celular do bolso, num ato quase surpreendente.

Na trama, uma jovem vive com a mãe em uma casa que está cedendo à maré. Ela tenta, de todas as formas, alertar a mãe sobre o perigo. O pai sumiu quando ela era criança, numa missão ao mar. Até certo ponto, a gente se pergunta quem é Jonas na história; pai ou filha? Depois, com a revelação de que a moça está grávida, existe a metáfora de Jonas na barriga da baleia. Por fim, um velho macabro (seria o pai devolvido do oceano?) é a figura mitológica que faltava. Em tom de ameaça, o filme avisa: “viemos do mar”. E uma vida termina, como nos primórdios. Fim dos tempos.

A Praia do Fim do Mundo foi filmado durante a pandemia, depois do lançamento de O Farol. Mas muitos desses elementos comuns aos dois filmes já apareciam em outros trabalhos de Petrus Cariry, que é um cineasta altamente experimentativo. De fazer poesia com as imagens. O penúltimo filme dele, O Barco (o mar é uma temática recorrente na filmografia dele), apesar de não ser em preto e branco, possui som estourado e iluminação bem marcada. Então, obviamente, os méritos são do Cariry, independentemente de qualquer coisa, que é um dos melhores diretores jovens brasileiros.

Filmes

Resenha de Marighella

É uma e meia da manhã. Pensei em dormir e escrever sobre as cenas que acabei de ver – com estes olhos, agora, vidrados na tela do computador – depois de algumas horas de descanso. Contudo, eu não consigo fechar os olhos para o que vi. Preciso deixar que escorram pelos meus dedos: as palavras, evidentemente; mas não só elas.

Marighella é um filme que tem tudo A VER com os olhos. Não porque foi na tela então do cinema que meus olhos estiveram vidrados por mais de duas horas. Nem porque marca a estreia (delirante!) do Wagner Moura na direção – e, portanto, do olhar dele atrás de uma câmera. Também não se deve ao fato de que, em determinado ponto da trama, um dos guerrilheiros crava contra os militares: “é olho por olho daqui para a frente”. E, sim, porque, nesse filme, são os olhos que falam.

A atuação do Seu Jorge como protagonista é estupenda. E, frequentemente, o longa faz planos detalhes dos olhos dele, que são tão expressivos quanto a garganta de cantor afinado que ele é. Em Marighella, no entanto, tudo está na mais perfeita desafinação. Desarmonia. Para atingir resultados tão apurados, Wagner usa movimentos de câmera milimetricamente (in)calculados. Para começar, o personagem Marighella é introduzido formalmente em um movimento de dolly in (a câmera vai de encontro a ele num deslocamento horizontal) que faz com que a gente esbarre nele sem tempo de desviar. Assim mesmo: a produção é quase inteiramente filmada com a câmera na mão, e a câmera subjetiva coloca a gente, enquanto espectador, dentro da cena na condição de testemunha…. ocular. Nas cenas em que os guerrilheiros se reúnem para planejar as próximas ações, a câmera está tão próxima deles que a gente se sente compactuando com aquilo. Em outras situações, a câmera por cima dos ombros do personagem (over the soulder) tem o campo de visão limitada pelo corpo, e a sensação é quase de estarmos sendo oprimidos pela adrenalina de vivenciar o perigo. Esses movimentos orgânicos da câmera ditam o ritmo que cada cena possui. Seja uma corrida, um tiroteio, um abraço entre pai e filho. A trilha sonora, um dos aspectos mais notáveis do longa, ajuda a dar o tom. A iluminação divide o filme em fases: começa mais escura, clareia, e escurece de novo, contextualizando cada período da narrativa. Como acontece com os pintores como Picasso.

Em outros instantes, Wagner escolhe romper a chamada “quarta parede” e Marighela olha direto para a câmera – nos nossos olhos. O filme, no entanto, não tem o intuito de converter ninguém a esquerdista ou militante. E muito menos retrata Marighella como herói apaixonante. Em nenhum momento, a gente se sente seduzido por ele de forma inquebrável. Ele é posto na tela com seus altos e baixos, vícios e virtudes, acertos e erros crassos, a fim de simbolizar a fragilidade humana. Mais do que isso, a fragilidade da própria democracia, que extrapola os lados da ditadura militar quando, mesmo dentro do grupo de guerrilheiros, poucos desobedecem a vontade de muitos. Os resultados são trágicos.

Na cena final, em que o carro do Marighella é cercado pelos militares, Wagner filma a tomada sob o ponto de vista de Marighella, sob a perspectiva dele sentado no banco de trás. É uma posição totalmente nova, uma vez que, até então, a gente tinha sido colocado apenas como observador, um voyeur. Estar no lugar dele muda tudo!

Marighella fechou os olhos, mas não era o fim. Na cena pós-crédito, os personagens cantam o hino nacional – eles vocalizam sem que o som do mar desapareça; na passagem anterior, o filho de Marighella entra no oceano, vencendo um medo mostrado anteriormente na trama (dos filhos deste solo…). Desafinadamente, sem harmonia, eles rugem, urram o hino. E, para mim, essa foi a parte mais impactante de um filme que tem uma trilha sonora de efeito… O hino nacional é algo muito forte, que emociona ainda que o contexto seja uma partida de futebol. Dentro de uma narrativa em que se luta pela democracia, isso transborda. Lágrimas marejaram dos meus olhos naquele instante. 

E são elas que escorrem pelos meus dedos e encharcam as palavras que digito. São duas e vinte da manhã e eu ainda não fechei os olhos sob o impacto da história que acabei de ver. Da história que tenho visto. Agora, as lágrimas escoam porque tenho medo que a História se repita: na madrugada de 15 de novembro, feriado de Proclamação da República – e depois de assistir a um filme que sofreu censura do atual governo -, eu suplico: não fechem os olhos! Mesmo quando as bocas forem caladas, deixem que os olhos falem. 

E eu achei lindo o que os olhos do Wagner Moura disseram com este que é um dos melhores filmes que meus olhos já viram. E temos dito!

p.s.: a revista Iris Cine trouxe um texto riquíssimo do diretor de fotografia de Marighella, Adrian Teijido.

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O livro de memórias de Bergman que parece uma obra de ficção!

Embora Bergman seja creditado como um dos maiores cineastas de todos os tempos, diversos estudiosos exaltam o Bergman escritor. O sueco costumava escrever roteiros literários para seus filmes – menos técnicos e mais próximos ao formato de um livro – e inseria neles comentários reflexivos, descritivos, para seus colaboradores que os leriam. Alguns desses roteiros foram, depois, vendidos como obras literárias.

No entanto, não é desses livros que vou tratar. Quero abordar aqui um exemplar chamado “Imagens”, em que Bergman revisita seus cadernos de anotações feitos durante múltiplas filmagens e coloca novas impressões sobre eles.

O diretor era um grande interessado em assuntos existenciais, tendo sido influenciado por Freud, Nietzsche e Jung. Filho de pastor, tornou-se ateu aos oito anos. Nunca se deu bem com os pais. Nem com ninguém. Casou-se cinco vezes, traiu todas as esposas e não era chegado a nenhum de seus nove filhos. O fiasco na vida pessoal, diz ele, era compensado na arte. Bergman começou no teatro, realizou 170 peças, e fez mais de sessenta filmes e minisséries. Dono de um dos trabalhos mais extensos da história do cinema, garante que nunca foi um artista intuitivo, tinha de se esforçar bastante. Assim, Imagens é uma oportunidade valiosa para conhecer os métodos de um cineasta genial. Mais do que isso, ao narrar os percalços da própria vida, Bergman se revela um personagem instigante. Tão excitante que nos vemos presos ao livro de memórias dele tal como se estivéssemos lendo uma obra de ficção de um autor excepcional. Ironicamente, Bergman não se considerava um bom escritor – ele estava errado!

Imagens é uma obra perfeita para ser lida enquanto se visita a filmografia dele. Você pode assistir a um título hoje e, em seguida, ler o capítulo do livro correspondente.

Em Persona – para Jung, persona era a “máscara” que uma pessoa vestia ao se apresentar ao mundo -, uma atriz está cansada de representar a vida que esperam que ela leve. E fica muda. Aqui, Bergman mostra uma de suas maiores marcas: o silêncio (aí, sim, majestosamente explorado para “dizer” muito ao espectador) e os enquadramentos em close-up (que, portanto, evidenciam a expressão dos atores, essencial nesse contexto de escassez de palavras). O expressionismo alemão influenciou o trabalho dele. É possível perceber isso no uso de luzes e sombras, que conferem uma atmosfera de espanto em algumas ocasiões e, por vezes, dividem o rosto das personagens ao meio (bem e mal, conhecimento e ignorância…). Sensualidade e solidão também são esboçadas através da iluminação ou a falta dela. Na trama, a atriz protagonista não gosta de ser mãe. Em Imagens, Bergman narra que ele mesmo foi um filho indesejado e viveu com a avó nos primeiros dias de vida.

No filme Morangos Silvestres – meu preferido! -, é exatamente às memórias da casa da avó que ele retorna. Bergman diz que caminhou, sem esforço, na dualidade entre tempo e espaço, sonho e realidade. O resultado é um filme que em muito lembra Tarkovsky, também aficionado por recontar as lembranças de infância e os pensamentos como parte da realidade. Para Bergman, o filme deveria se aproximar de um sonho, em que a narrativa fluiria quase que espontaneamente, como na influência dos fatores psicológicos enquanto sonhamos. Bem como nos sonhos, os filmes deveriam deixar o espectador livre para fazer interpretações. Assim foi o cinema de Tarkovsky, que não entregava respostas prontas. Tarkovsky acreditava que o filme não poderia se dar em tempo cronológico por dever se ocupar de retratar o onírico. O tempo, aliás, era protagonista para ambos. Se o cineasta russo escreveu um livro inteiro sobre o tema – “Esculpir o tempo”, existe um comentário sobre ele no meu feed -, Bergman evidenciava essa preocupação ao colocar relógios destacados em todos os filmes.

Gritos e Sussurros se inicia com um close-up num relógio (o filme tem uma cenografia bem teatral e ganhou o Oscar de melhor fotografia).

Uma das personagens centrais está muito doente e tem a morte à cabeceira. Bergman escreveu que o longa é o único seu que não poderia ser em p&b. Se, em trabalhos anteriores, luz e sombra conferiam o efeito desejado, aqui, é o vermelho nas paredes, nas vestimentas, no fade-out (que usualmente seria preto) e até no cabelo ruivo de uma personagem que liga o sinal de alerta.

A morte estrela as narrativas de Bergman. Em O Sétimo Selo, de fato. Um cavalheiro retorna ao vilarejo natal depois das Cruzadas e encontra a morte “em pessoa” o esperando. Em consonância com a trilogia “Silêncio” do cineasta (Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio), O Sétimo Selo questiona a inércia de Deus diante do sofrimento do mundo. A história tem, inclusive, uma dinâmica dom quixotesca, em que o cavalheiro, flutuante e esperançoso, tem um fiel escudeiro, racional e cético, que o traz de volta ao solo. Outra referência interessante está na cena final, considerada um dos marcos do cinema recente: a morte leva um grupo de pessoas em fileira e Bergman filma a cena à distância, fazendo parecer uma pintura de Danse Macabre – “ou dança da morte”; na Idade Média, esse tipo de gravura era realizada para lembrar as pessoas de que elas não deveriam se apegar aos prazeres mundanos, pois isso tudo findaria.

Em Imagens, Bergman narra justamente essa ideia de que, aparentemente, ele jamais seria suficiente para o pai ou para Deus. Em Fanny & Alexander, já na TV, a dupla de irmãos que dá nome à minissérie se muda para a casa do padrasto, um religioso como o pai de Bergman. Alexander, a criança, também se questiona sobre a existência de Deus.

Embora sua filmografia tenha teor psicológico, Bergman torcia o nariz para profissionais da área. Certa vez, disse que foi ao psiquiatra tratar pernas inquietas e o médico afirmou que ele era saudável. A esposa refutou a versão. Uma recorrente na biografia de Bergman, a propósito, são as mentiras que ele contava sobre si mesmo. Eu escrevi, no início do texto, que Imagens era tão instigante que parecia um livro de ficção e, talvez, fosse mesmo assim; fictício – eu é que eu estava errada! Bergman acerta mesmo quando erra.

Séries Estrangeiras

A série que fez milhares de pessoas se divorciarem!

Há a lenda de que Scenes from a Marriage, minissérie criada por Ingmar Bergman na década de 1970, aumentou o número de divórcios na Suécia.

Na trama, que se passa numa invernal Estocolmo, Marianne leva uma vida adorável com o marido, Johan (não direi “surpreendentemente calorosa” porque o casal quase não faz sexo)… até ser trocada pela amante. A personagem, servil ao esposo e à ideia do matrimônio, implora para não ser deixada. Nos capítulos finais, contudo, está emancipada!

Mulheres ocuparam lugar de destaque na filmografia de Bergman, em frente e atrás das câmeras – não era raro haver mais moças que homens na equipe dele. Em Scenes from a Marriage, embora o casal seja posto como protagonista, o holofote está em Marianne. A intérprete da personagem é Liv Ullmann, com quem Bergman viveu intensa parceria no trabalho e no amor. Marianne era uma releitura da própria atriz: Bergman pediu a ela, anos antes, que escrevesse um diário, e o caderno foi usado por ele para conceber o roteiro.

*INT: Close-up no relógio, que anda, anda…*

2021. Uma nova versão de Scenes from a Marriage, agora em Hollywood e protagonizada por Jessica Chastain e Oscar Isaac, teve o episódio final transmitido no domingo pela HBO. Quem idealizou o remake foi o filho de Bergman, Daniel Bergman, que pensou em fazê-lo centrado nos filhos do casal. Na série original, ele acha, era como se as crianças não existissem (Bergman nunca foi próximo dos filhos). A ideia não vingou – nem Daniel se vingou do pai. Hagai Levi (criador do seriado israelense que deu origem a Sessão de Terapia e In Treatment) chegou ao projeto e considerou que a trama antiga também não envelheceu bem…

Até a década de 1960, Hollywood produziu, massivamente, filmes sobre casamentos. Segundo o livro I Do and I Don’t: A History of Marriage in the Movies, sete elementos apareciam nessas produções, dentre eles, dinheiro, infidelidade, filhos, incompatibilidade e classe social. Todos aplicáveis à narrativa de Bergman. Após o período, quando as mulheres saíram de casa para trabalhar, esse tipo de produção se tornou impopular. Para a autora, são divórcio, feminismo e casamento homoafetivo os aspectos retratados atualmente.

Sabendo disso, Levi foi estratégico: trocou os personagens. O papel de Jessica Chastain, Mira, é uma mulher bem-sucedida que se apaixona por outro homem (correspondente a Johan) – e até beija uma amiga. Já Oscar Isaac é o traído que roga pela manutenção do matrimônio. Essencialmente, é a minissérie velha atualizada. Os episódios inicial e final são diferentes, mas o “recheio” das duas tramas é incrivelmente parecido. Então, o que acaba por conferir frescor ao programa estadunidense é justamente essa inversão dos papéis.

Levi ainda criou metáforas belíssimas em sua releitura, uma vez que Bergman, conhecido por ter sido um diretor altamente experimentativo, realizou uma minissérie mais convencional nesse aspecto. No primeiro episódio da nova atração, o casal decide fazer um aborto (plot inédito). E o marido, contrário à ideia, vai buscar uma Pepsi na máquina de refrigerante. A lata cai da máquina numa clara (e inesperada) alusão ao aborto. Ora, quando algo nos aflige na vida, mesmo os acontecimentos mais aleatórios nos remetem ao objeto de nossa preocupação. Ali, o marido, encarando a Pepsi, foi humanizado de forma arrebatadora!

Já o episódio final, embora tenha começado distinto do original, terminou da mesma forma. O marido sonha que não consegue alcançar a ex-esposa, com quem está ali na cama, e a filha. Ele desperta desesperado. A cena jamais poderia ser mudada porque SINTETIZA a obra bergmaniana: Bergman acreditava que os filmes representavam os sonhos. E, para ele, que casou muitas vezes, apenas a solidão era mais “infernal” que o próprio casamento (quando o marido não alcança a ex-esposa, é a solidão que ele teme). Incessantemente, o roteiro de Bergman culpa os pais (casados) pelos fiascos dos protagonistas, algo bastante pessoal para o diretor e, inclusive, freudiano. Toda vez que o casal tenta fazer sexo, há briga. Levi acha que a minissérie de Bergman pregava que o casamento era algo horrível. No remake dele, ele diz que a separação é que é difícil. Se, com isso, ele fará o número de divórcios diminuir? São “cenas” para próximos capítulos (existe mesmo uma ideia de continuação…).

p.s.: Levi optou por, no início dos episódios, filmar os atores antes do diretor pronunciar “ação”. O que foi interessante. No episódio final, porém, ele variou: filmou os atores depois do “corta”. A cena que antecedeu isso foi a do sonho, profunda, que fazia com que a gente mergulhasse, sem apetrechos de segurança, no universo das duas personagens tão bem interpretadas. Filmá-las como Jessica e Oscar, em seguida, foi um balde de água fria. Como despertar de um sonho, abruptamente. Em apneia.

Filmes · Séries Nacionais

Holocausto Brasileiro: de quem é a culpa? Documentários respondem

Esta noite, às 21h30, o Canal Brasil estreia uma série ficcional inspirada pelo livro da Daniela Arbex, sobre o qual falei ontem. Uma das protagonistas de “Colônia”, a atriz Andreia Horta descreveu como brutal a experiência de visitar as fotografias tiradas à época da tragédia e, ao fitar os olhos daquelas personagens reais, tentar dimensionar o que havia ocorrido a elas. Foi assim que ela construiu sua personagem fictícia.

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(Continuação do post de ontem)
Se, no conto de Machado de Assis, o final surpreende quando o doutor Bacamarte conclui que não eram os pacientes que estavam loucos, mas ele próprio, e ele mesmo se recolhe ao hospício, quem seria culpado pelas abundantes décadas de tortura do Colônia? Haveria, também na vida real, um plot twist?

A culpa é de todos. E o documentário Holocausto Brasileiro, produzido pela HBO, também baseado no livro de Arbex, ajuda a chegar a essa conclusão quando, nós mesmos, temos a oportunidade de olhar os olhos de quem foi vítima, na condição de paciente ou mesmo funcionário, daquele pesadelo desperto.
“Eu tinha vergonha de ser psiquiatra”, diz o médico Ronaldo Simões, um dos responsáveis por colocar fim ao Colônia, para, em seguida, corrigir-se. “Eu tinha vergonha de ser gente, não só psiquiatra.” Falhamos todos.

No documentário, podemos ver, em vídeo, muitos dos personagens que conhecemos nas fotos do livro. São os sobreviventes da tragédia nos dias atuais. Eles são poucos, a maioria não resistiu ao Colônia. Os que saíram de lá também não duraram muito. A média de sobrevida fora do Colônia é de dez anos. Um dos momentos mais dramáticos do filme é quando um dos ex-internos, institucionalizado ainda na infância, revela que os pais nunca o visitaram no Colônia, nem na casa onde vive agora. Em tom de profundo lamento, ele diz que tem saudade.

Outro documentário, Em Nome da Razão, vai mais longe. A produção de 1979 apresenta esses personagens nos tempos de institucionalização. Surpreendentemente autorizado a filmar o interior do hospício, Helvécio Ratton mostra cenas piores que as dos filmes de terror, em 25 minutos… infindáveis.

Sandra, moça que teve a filha tirada dela, era símbolo da resistência, com uma trajetória impressionante. A revolta se dava dentro do corpo – ela introduziu um cabo de vassoura na vagina – ou de dentro para fora – ela aparece cantando uma marchinha de revolta de composição própria, que virou tema dos internos.

Foucault dizia que, ao contrário do que se pode pensar, o poder não é uma instituição. O poder está na relação entre duas pontas, diluído em diversos agrupamentos – uma família, escola etc. – que estabelecem as regras de acordo com os costumes. Dessa forma, quem não aceita é punido, para que haja um controle. Eram as próprias famílias, muitas vezes, que encaminhavam os “loucos” ao Colônia. Mas, para Foucault, em todas as relações existe a possibilidade de resistência, e só através dela há mudança.

No conto de Machado, a mudança acontece quando os moradores da cidade se rebelam. Eles tomam a câmara municipal e exigem que o médico seja contido. No livro de Arbex, ela ressalta que o Holocausto Brasileiro não deve ser esquecido e fala sobre as leis de saúde mental tão pobres no Brasil. Leis que não despertam interesse da população; quem, como no conto, deveria clamar aos seus representantes por reformas legislativas.

Tanto o documentário Holocausto Brasileiro quanto Em Nome da Razão terminam afirmando que a culpa do ocorrido no hospital público não foi do Estado. Pelo menos, não isoladamente dele. Já que os tratamentos realizados no Colônia eram o que estava em voga na medicina psiquiátrica da época. E iam de acordo com o que previa o judiciário. Então, a culpa é de todo mundo, que não se indignou com a situação. E, talvez, continue não o fazendo.

Para mostrar que os problemas desse tipo não se acabaram junto com o Colônia, Arbex cita as internações compulsórias dos dependentes químicos, autorizadas em 2019, a falta de leitos nos hospitais públicos, os presídios superlotados (como no Colônia, de negros e pobres) e as comunidades à mercê do tráfico. Enquanto não resistirmos ao sistema, somos culpados. Como alertou Foucault, é com resistência que acontecem as mudanças. Que acontecem os plot twists. Mas constatar isso, por si só, já é um plot twist.

Livros

Holocausto Brasileiro e O Alienista: quantos vagões separam a realidade da ficção?

“A vida é trem-bala, parceiro, e a gente é só passageiro prestes a partir.”
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O “trem de doido” chegava a Barbacena trazendo nele centenas de novos pacientes para o Colônia, hospital psiquiátrico da cidade mineira. A maioria não duraria muito ali – em oitenta anos, mais de 60 mil internos perderam a vida devido às condições sub-humanas do hospício.

Essa tragédia ficou conhecida como “Holocausto Brasileiro”, mesmo título do livro da jornalista Daniela Arbex. A autora põe luz nos corredores assombrosos e atulhados de vultos, dignos de um filme de terror, do edifício “de fachada” charmosa e arquitetura barroca. Até os anos 1930, o Colônia foi um sanatório chique, com talheres de prata e banquetes. Depois disso, houve um plot twist.

Com brilhantismo, Daniela Arbex dá rosto e voz às vítimas de uma narrativa real quase esquecida às sombras. No Colônia, havia filhas de fazendeiros que ousaram questionar seu lugar numa sociedade patriarcal, machista. A enorme maioria dos internados, no entanto, era composta por negros e pobres, que não tinham dinheiro para custear a estadia – ainda assim, davam lucro à instituição.

Com o número elevado de mortes – os internos eram deixados pelados, dormiam amontoados para se proteger do frio e mal se alimentavam, tendo alguns pacientes comido ratos -, os cadáveres eram vendidos a universidades de Minas Gerais e de outros estados. Os corpos frios e esqueléticos alimentavam um mercado aquecido. Quando esse comércio saturou, os mortos passaram a ser derretidos com ácido, já que o cemitério, que, inusitadamente, ficava anexo ao hospital, precisou ser desativado por falta de capacidade, depois de anos de matança.

Entre os pacientes ricos e pobres havia uma coisa em comum: a maioria não era louca. Lá, havia homossexuais, rebeldes, tímidos, gente que não cabia nos padrões estabelecidos pela sociedade.

Nesse ponto, é impossível não recordar o conto O Alienista, de Machado de Assis. Na história fictícia, também ocorrida numa pequena cidade, elevada quantidade de pessoas foi internada no manicômio local pelo médico Simão Bacamarte, que trancafiava todo cidadão que fugisse à “normalidade”; ou aquilo tido como normal.

Outra coincidência é que os pacientes inventados não pagavam pela estadia, mas o lucro com os loucos, tal qual aconteceu em Barbacena, é citado pelo escritor. Se a tragédia mineira ficou conhecida como Holocausto Brasileiro, na obra machadiana, o episódio é chamado de “bastilha da razão humana”, em alusão ao presídio cuja tomada deu início à Revolução Francesa.

Em Barbacena, esteve o célebre filósofo francês Michel Foucault, que se espantou com o que viu. Em sua bibliografia, Foucault dizia que, comumente, era chamado de “louco” todo aquele que não se adequava às normas impostas. O estudioso defendia que a história da loucura se confundia com a história da moral. E que, frequentemente, eram colocados em instituições psiquiátricas gente que não possuía distúrbio algum, apenas resistia em seguir as regras. Para Foucault, mesmo um louco não deveria ser tirado da sociedade, mas a sociedade é que deveria encontrar uma maneira para que ele existisse nela. A luta antimanicomial é, ainda, atual.

Foi o psiquiatra italiano de renome Franco Basaglia, outro a visitar o Colônia e um dos responsáveis por colocar fim à bizarrice, quem comparou a tragédia a um campo de concentração nazista.

A primeira denúncia sobre as condições do Colônia se deu em 1961, nas páginas da importante Revista Cruzeiro. Causou revolta na época, todavia, não demorou a ser esquecida. Em 1979, o jornal Estado de Minas publicou uma grande-reportagem chamada Porões da Loucura e, só então, o holocausto começou a ser abolido.

Se, no conto de Machado de Assis, o final surpreende quando o doutor Bacamarte conclui que não eram os pacientes que estavam loucos, mas ele próprio, e ele mesmo se recolhe ao hospício, quem seria culpado pelas abundantes décadas de tortura do Colônia? Haveria, também na vida real, um plot twist?

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Continua amanhã.

Filmes

Dia do Cinema Nacional – Resenha de “Como Nossos Pais”

“Como nossos pais” começa de forma abrupta. A panela está no fogo e, ao fundo, a família está sentada à mesa. A avó, Clarice, alcança a panela e a envolve num tecido de algodão, para não queimar as mãos. Um segredo ebuliente logo vai ser derramado sobre todos, sem cuidado. É a filha Rosa quem mais se machuca com ele.

No auge da discussão à mesa, que fica na parte externa da casa, a chuva interrompe. É tempestade que se faz ali e não apaga as labaredas. O filme de Laís Bodanzky, como é típico dela, é cheio de simbologias. Clarice tem câncer terminal, causado pelo vício em cigarro, e reluta em largar o prazer nos últimos meses de vida. A fumaça do cigarro acompanha a protagonista por todo o filme – afinal, é ela quem coloca fogo nas trajetórias dos outros personagens, ao mesmo tempo em que está prestes a virar cinzas. Clarice é engajada nas causas ambientais e festeja que o filho vai salvar a Amazônia, conhecida, ainda que erroneamente, como o “pulmão do mundo”. A ironia é que ela polui o dela próprio.

A mesma simbologia ocorre com Rosa, a filha, com quem ela tem um relacionamento difícil. Rosa trabalha numa empresa de aço. Ao assistir a um filme sensível, como é este aqui, é natural que a gente vá interpretando, significando as coisas. Quando Rosa contou que tipo de trabalho tinha, achei que servia de metáfora para como ela gostava de parecer: forte, uma mulher de aço. Contudo, a gente nunca tem certeza se está viajando um pouco. Algumas cenas depois, fiquei extasiada quando ela mesma confessou que tentava se mostrar dura, e a analogia da mulher de aço chegou a ser proferida por um amigo dela.

A relação de Rosa com o marido também não é fluida. Não por acaso, uma das conversas mais importantes do casal acontece justamente no banheiro, que tem duas pias e dois espelhos. Eles estão juntos, mas estão separados. Outro enquadramento de câmera recorrente coloca os quartos do casal e das filhas lado a lado, dividindo a tela ao meio. Um retrato perfeito do casamento, especialmente para a mulher (o marido dorme num canto da tela e as filhas no outro; Rosa gostaria que ele a ajudasse com afinco).

A primogênita do casal tem uma personalidade semelhante a de Rosa e confronta a mãe o tempo todo. Como Rosa e Clarice. A menina quer ir à escola de bicicleta e Rosa acha perigoso.

Rosa é mais parecida com o pai, Homero (tal qual o poeta grego), homem das artes e da sabedoria. Todavia, no início do filme, a gente descobre que ele é pai dela de criação apenas. Pois é numa cena com ele (a Maria Ribeiro ri do ator Jorge Mautner genuinamente, acho lindo esses momentos orgânicos) que nós constatamos o engano: Rosa é uma releitura, mesmo, da mãe. É quando o pai de criação diz que um filho carrega “dna”, “herança”, que as semelhanças entre Rosa e Clarice ficam cristalinas. E elas, finalmente, dialogam. Como fez no casamento com Homero, Clarice estimula a filha a ter um caso extraconjugal.

Com o potencial amante, Rosa vai às ruas de bicicleta – que é símbolo da liberdade, mas é, também, algo que ela considera perigoso. Um pouco antes, o marido de Rosa reclamava que os dois não transavam há tempos. Ali, com o pretenso caso, ela mostra que o desejo sexual é como andar de bicicleta; a gente não desaprende nunca.

Apesar de o filme se chamar “Como Nossos Pais”, essa é a jornada de Rosa se descobrindo mulher… mãe, esposa e, por que não, filha. Cada dia mais, ela se parece com a mãe.

Numa cena emblemática, Clarice compra sapatos vermelhos, ela diz que serão os últimos dela. Na tomada seguinte, ela combina o par de calçados com um cardigã da mesma cor, que representa o amor. Clarice morre, vira cinza. Em seu enterro, um incenso lança fumaça sobre o caixão. Em seguida, Rosa veste o casaco carmim da matriarca. Ela se transformou na própria Clarice. E, de bicicleta, leva as filhas à escola. A filha mais velha usa uma bicicleta vermelha, enquanto ela e a caçula carregam a cor em suas vestimentas. A parede da escola é vermelha. Esta é a última cena. Em seguida, a inscrição “Como Nossos Pais” aparece na tela. O filme acaba da mesma forma abrupta com que começou. Assim termina a vida. (uma tragada e) Um sopro. Cinzas.