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Holocausto Brasileiro e O Alienista: quantos vagões separam a realidade da ficção?

“A vida é trem-bala, parceiro, e a gente é só passageiro prestes a partir.”
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O “trem de doido” chegava a Barbacena trazendo nele centenas de novos pacientes para o Colônia, hospital psiquiátrico da cidade mineira. A maioria não duraria muito ali – em oitenta anos, mais de 60 mil internos perderam a vida devido às condições sub-humanas do hospício.

Essa tragédia ficou conhecida como “Holocausto Brasileiro”, mesmo título do livro da jornalista Daniela Arbex. A autora põe luz nos corredores assombrosos e atulhados de vultos, dignos de um filme de terror, do edifício “de fachada” charmosa e arquitetura barroca. Até os anos 1930, o Colônia foi um sanatório chique, com talheres de prata e banquetes. Depois disso, houve um plot twist.

Com brilhantismo, Daniela Arbex dá rosto e voz às vítimas de uma narrativa real quase esquecida às sombras. No Colônia, havia filhas de fazendeiros que ousaram questionar seu lugar numa sociedade patriarcal, machista. A enorme maioria dos internados, no entanto, era composta por negros e pobres, que não tinham dinheiro para custear a estadia – ainda assim, davam lucro à instituição.

Com o número elevado de mortes – os internos eram deixados pelados, dormiam amontoados para se proteger do frio e mal se alimentavam, tendo alguns pacientes comido ratos -, os cadáveres eram vendidos a universidades de Minas Gerais e de outros estados. Os corpos frios e esqueléticos alimentavam um mercado aquecido. Quando esse comércio saturou, os mortos passaram a ser derretidos com ácido, já que o cemitério, que, inusitadamente, ficava anexo ao hospital, precisou ser desativado por falta de capacidade, depois de anos de matança.

Entre os pacientes ricos e pobres havia uma coisa em comum: a maioria não era louca. Lá, havia homossexuais, rebeldes, tímidos, gente que não cabia nos padrões estabelecidos pela sociedade.

Nesse ponto, é impossível não recordar o conto O Alienista, de Machado de Assis. Na história fictícia, também ocorrida numa pequena cidade, elevada quantidade de pessoas foi internada no manicômio local pelo médico Simão Bacamarte, que trancafiava todo cidadão que fugisse à “normalidade”; ou aquilo tido como normal.

Outra coincidência é que os pacientes inventados não pagavam pela estadia, mas o lucro com os loucos, tal qual aconteceu em Barbacena, é citado pelo escritor. Se a tragédia mineira ficou conhecida como Holocausto Brasileiro, na obra machadiana, o episódio é chamado de “bastilha da razão humana”, em alusão ao presídio cuja tomada deu início à Revolução Francesa.

Em Barbacena, esteve o célebre filósofo francês Michel Foucault, que se espantou com o que viu. Em sua bibliografia, Foucault dizia que, comumente, era chamado de “louco” todo aquele que não se adequava às normas impostas. O estudioso defendia que a história da loucura se confundia com a história da moral. E que, frequentemente, eram colocados em instituições psiquiátricas gente que não possuía distúrbio algum, apenas resistia em seguir as regras. Para Foucault, mesmo um louco não deveria ser tirado da sociedade, mas a sociedade é que deveria encontrar uma maneira para que ele existisse nela. A luta antimanicomial é, ainda, atual.

Foi o psiquiatra italiano de renome Franco Basaglia, outro a visitar o Colônia e um dos responsáveis por colocar fim à bizarrice, quem comparou a tragédia a um campo de concentração nazista.

A primeira denúncia sobre as condições do Colônia se deu em 1961, nas páginas da importante Revista Cruzeiro. Causou revolta na época, todavia, não demorou a ser esquecida. Em 1979, o jornal Estado de Minas publicou uma grande-reportagem chamada Porões da Loucura e, só então, o holocausto começou a ser abolido.

Se, no conto de Machado de Assis, o final surpreende quando o doutor Bacamarte conclui que não eram os pacientes que estavam loucos, mas ele próprio, e ele mesmo se recolhe ao hospício, quem seria culpado pelas abundantes décadas de tortura do Colônia? Haveria, também na vida real, um plot twist?

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Continua amanhã.

2 comentários em “Holocausto Brasileiro e O Alienista: quantos vagões separam a realidade da ficção?

  1. Com o fim da temporada de “Colônia”, eu resolvi dar uma passadinha aqui no seu blog, Gaby, afinal de contas, você me fez companhia nas minhas reviews, e, agora, eu quero “trocar figurinhas” no seu espaço, também, risos.

    Adorei a sua analogia ao conto citado e é chocante essa realidade um tanto triste e, claro, pavorosa. Na verdade, o que mais me espantou foi a normalidade que toda a sociedade civil promoveu em relação aos “indesejáveis” e, até hoje, promove. Não é à toa que o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2020 foi em relação ao contexto do estigma associados às doenças mentais na sociedade brasileira.

    E esses indivíduos internados são tão inteligentes e cativantes, que a gente deveria acolhê-los, e não julgá-los de maneira pejorativa. A personagem Soraya, por exemplo, é um doce de pessoa e perdeu a vontade de falar em virtude do grande silêncio de sua vida naquele ambiente hostil. Imagina ficar uma vida inteira sem conversa? Sem falar? Sem expor os seus sentimentos? Nossa, isso é bárbaro e profundo!

    Já em relação “plot twist” da série, nós vamos vê-lo em uma possível e necessária segunda temporada, depois daquele “gatilho” de Elisa no décimo episódio. Quem sabe os verdadeiros culpados da ficção sejam presos? Tomara, pois, desse modo, “Colônia” continuará com a sua missão: fazer com que o telespectador reflita sobre a importância da Luta Antimanicomial.

    Como sempre, você tem o dom das palavras, Gaby!

    #AmoMaisQueSéries

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  2. Sabe que semana passada foi Dia do Escritor e eu cheguei a falar no Instagram que é incrível o quanto a gente consegue aprender mesmo com as obras de ficção. Na ocasião, eu me referia a um conto do Poe, curiosamente também com aspectos psiquiátricos. Mas O Alienista, a série da TV Brasil, essas são obras de ficção que também ensinam a gente. Fiquei impressionada com a sensibilidade com que a tragédia do Colônia foi retratada na TV. É claro que, por ser um produto do audiovisual direcionado à massa, é preciso ter algum cuidado com a maneira que isso é feito. Embora se deseje impactar as pessoas, os idealizadores não querem deixar nenhum espectador traumatizado. Eu li o livro da Daniela Arbex e o que ela narra na literatura é mais chocante e brutal do que aquilo mostrado na série. Mas isso não é uma deficiência do produto televiso; ao contrário: é onde a série triunfa. E é por isso que, ao que tudo indica, vai continuar triunfando, com o filme, com uma próxima temporada. Foi uma série delicada, que, como eu disse algumas vezes comentando suas maravilhosas reviews no Série Maníacos, deu bofetadas com luva de pelica. Acredito que a delicadeza seja, sempre, a melhor forma de ensinar.

    Por falar em delicadeza, obrigada pela gentileza da sua visita. Amei!

    #AmoMaisQueSérie

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